Ecos da cidade
O meu primeiro contato com a arte urbana foi logo a seguir à Revolução dos Cravos em Portugal. Depois do 25 de abril, começaram a surgir espontaneamente por toda a parte murais com mensagens políticas de vários partidos, sobretudo de esquerda que apelavam à “revolução já” e sugeriam utopias. Sempre achei mais interessantes as dos anarquistas por terem um humor muito especial. Em 1975 fui estudar com uma bolsa para a Alemanha, mais exatamente para a Alemanha Oriental. Aqui numa fase de pós-revolução voltei a ver murais por toda a parte sobre a realização da tal utopia socialista. Porém, desta vez tratava-se de mensagens ideológicas fabricadas pelo poder dominante, tornadas invisíveis pela sua repetição e despidas, por isso, do seu sentido original. O lado ocidental do famigerado muro que dividia a cidade estava coberto de graffitti e slogans, mas escondidos, por ironia ou não, das pessoas a quem se dirigiam.
Na minha nova vida na Holanda e Bélgica a partir dos anos oitenta, apercebi-me nas ruas da necessidade de comunicar através de graffitti dos mais variados estilos, desde o minimalismo e o grafismo puro até à banda desenhada. Ficou-me depressa claro que nasciam de uma atitude rebelde coletiva, sem uma linha coerente, muito embora notasse uma afirmação cada vez mais individual. Mesmo não concordando com tudo o que via, fascinava-me essa expressividade, essa rebeldia e a insistência na anonimidade.
Nos últimos anos houve, na minha opinião, uma mudança radical de atitude. Por um lado, têm aumentado os casos de pixação pura, umas vezes vazia de conteúdo, outras vezes exprimindo um grito de raiva (São Paulo). Por outro lado, foi aparecendo cada vez mais graffitti como género artístico. Não se trata aqui apenas de comunicar algo, de procurar convencer alguém de alguma coisa, mas sim de partilhar uma ideia, uma sensação. As imagens existem por si, indiferentes à possibilidade de alguém as captar ou não, justamente em cidades onde ninguém tem tempo para olhar ao seu redor. Mas elas estão lá e são já parte do ambiente urbano. Estou em crer que se desaparecessem por completo, todos iriam estranhar a sua ausência.
Para evitar o “vandalismo”, muitas câmaras ou prefeituras começaram a oferecer espaços para graffitti, por exemplo, para tapar obras, cobrir fachadas degradadas, etc. A reação de alguns graffiteiros, talvez para evitar riscos, foi acomodar-se à nova situação de legalidade, sair da anonimidade e reclamar para si o estatuto de artista plástico. Muitos deles mostraram a cara e começaram a trabalhar por encomenda. Entretanto, já há várias galerias que expõem arte urbana de graffiteiros famosos e fazem disso negócio. Isso significa que, apesar de muitos persistirem na sua “missão”, a ideia original de rebelião, de colectivo, desapareceu para dar lugar a acções individuais com marca exclusivamente pessoal.
Como fotógrafa, sinto-me fascinada pela cidade, sobretudo pelos detalhes aparentemente ocultos. É, portanto, inevitável que os meus olhos se sintam atraídos por graffitti. Não fotografo, em geral, o todo, mas apenas certos pormenores que me chamam a atenção. Também me aproprio dessa arte, e me inspiro nela, usando as paredes pintadas como cenário ou palco por onde desfilam pessoas anónimas, umas vezes camufladas, outras vezes contrastando com o pano de fundo. É como se desse modo as fizesse entrar numa história como personagens ignorantes do seu destino. Devo confessar que quando capto essas imagens estou mais preocupada com as cores, as formas e a composição, mas intuitivamente estou criando um diálogo entre arte urbana, cidade e seus habitantes. Sinto que essas paredes refletem visualmente os ecos da cidade lançando-os de volta para lhe dar uma voz.